O apego das coisas e das criaturas



"Para que uma alma pertença toda a Deus, duas coisas são precisas: primeira, desapegar o afeto de todas as criaturas; segunda, consagrar todo o amor a Deus, e é nestas duas coisas que consiste a solidade do coração. Em primeiro lugar, portanto, é preciso desapegar o coração de todo o afeto terrestre. Dizia São Francisco de Sales: ‘Se eu soubesse que em meu coração havia uma fibra que não fosse de Deus, quisera logo arrancá-la’. Enquanto se não limpar e purificar o coração de todo o afeto terrestre, não pode nele entrar o amor de Deus para possuí-lo todo. Pelo seu amor Deus quer reinar em nosso coração, mas, quer reinar ali sozinho. Não admite rivais que lhe roubem parte do afeto, que Ele com justiça exige todo para Si. — Certas almas queixam-se de que em todos os seus exercícios de devoção não acham Deus e não sabem que meios devam empregar para O acharem. Santa Teresa, porém, ensina-lhes o meio acertado, dizendo: Desapega teu coração de todas as criaturas, busca Deus e achá-lo-ás.

Para se separar das criaturas e tratar somente com Deus, muitos não podem retirar-se para os desertos, conforme talvez quisessem. Compreendamos bem que, para gozarmos da solidão do coração, não são precisos desertos. Os que se virem obrigados a tratar com o mundo, desde que tenham o coração livre de apegos ao mundo, poderão possuir a solidão do coração e estar unidos com Deus até no meio das ruas, das praças e dos tribunais. — É necessário, todavia, que o espírito se eleve muitas vezes a Deus, para o que serve o uso frequente das orações jaculatórias. A respeito destas, escreve São Francisco de Sales que suprem a falta de todas as outras orações, mas que todas as outras orações não podem suprir a falta das jaculatórias.” ¹




Facilmente encontraremos santos, doutores e religiosos repetindo essas palavras incessantemente, e incessantemente fracassaremos quanto mais demorarmos em ouvi-los. A Santíssima Virgem é o nosso maior exemplo de desapego das coisas terrenas e conhecimento e apego às coisas do alto: Ela não conheceu todas as belezas do mundo, não teve a graça de contemplar as maravilhas da terra, de viajar e se admirar com tantas perfeições que Deus dispõe através da natureza, no entanto foi coroada como Rainha do céu e da terra, é o jardim fechado da Santíssima Trindade e tesoureira dos tesouros divinais. Ela também não buscou ser vista, pelo contrário, se escondia e fugia da visão de todos, mesmo sendo a mais bela das mulheres que pisaram na Terra. Ora, que maior exemplo podemos ter que, todas as maravilhas dessa terra em nada se comparam com as belezas do paraíso? A Virgem nos mostrou que o apego e a contemplação das coisas na terra são baixezas, pois nos desapegamos das coisas do céu e infinitamente mais belas, que nos incita êxtase e felicidade eterna. A Virgem também nos revela que a beleza das criaturas em nada se compara com a perfeição humana que é seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem se deve toda contemplação e adoração.



“Para atingir este estado sublime de união com Deus, é indispensável à alma atravessar a noite escura da mortificação dos apetites, e da renúncia a todos os prazeres deste mundo. As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. A luz é incompatível com as trevas, como no-lo afirma São João ao dizer que as trevas não puderam compreender a luz. (Jo 1,5)

Para dar mais evidência a esta doutrina, observemos que o afeto e o apego da alma à criatura a tornam semelhante a esta mesma criatura. Quanto maior a afeição, maior a identidade e a semelhança, porque é próprio do amor fazer o que ama semelhante ao amado. Davi, falando dos que colocavam o amor nos ídolos, disse: “sejam semelhantes a eles os que os fazem; e todos os que confiam neles” (Sl 113,8). Assim, o que ama a criatura desce ao mesmo nível que ela, e desce, de algum modo, ainda mais baixo, porque o amor não somente iguala, mas ainda submete o amante ao objeto do seu amor. Deste modo, quando a alma ama alguma coisa fora de Deus, torna-se incapaz de se transformar nele e de se unir a ele.” ²


Como somos tolos, como podemos ser tão baixos em nos apegar às coisas terrenas? A natureza e as criaturas são apenas traços, pequenos indícios das belezas e maravilhas da eternidade e não o paraíso em si. O desapego às criaturas e às coisas faz parte da nossa busca pela perfeição e pela felicidade. As inclinações de nossa carne são cruéis, mas não devemos nos render a elas. A nossa razão e vontade clamam ao belo através das artes, da música, da natureza etc, porque nos aproximam do eterno. Quanto mais transcendente melhor, mas devem ser todas as coisas ordenadas para o mesmo fim; a arte não pode ser o fim último, mas um meio para o fim último que é a eternidade e perfeição no paraíso. Se a arte se torna nosso fim último, há o apego e contemplação das criaturas e das coisas - o que deixa de ser arte e se torna uma baixeza e perde toda a sua nobreza e beleza.

Esse mundo é belíssimo, que grande graça é sermos participantes da criação divina! Tanto mais participantes da vida eterna! Fomos tornados filhos adotivos de Deus através do mérito de Nosso Senhor Jesus Cristo. Valorizemos mais a vida eterna, pois o mundo passa, o paraíso não. Valorizemos as belezas e riquezas de lá, que são infinitas e eternas e aqui passageiras e infinitamente inferiores. Valorizemos nossa alma, nossa razão, nossa busca pela santidade e pureza, pois aqui vivemos poucas décadas, e podemos nos deliciar na feiura, nos vícios, nos pecados, o que já não nos traz felicidade nem nesta vida e nos condena eternamente nesta infelicidade.


“A baixeza da criatura é infinitamente mais afastada da soberania do Criador do que as trevas o são da luz. Todas as coisas da terra e do céu, comparadas com Deus, nada são, como disse Jeremias: “Olhei para a terra, e eis que estava vazia, e era nada; e para os céus, e não havia neles luz” (Jr 4,23). Dizendo ter visto a terra vazia, dá a entender todas as criaturas e a própria terra serem nada. Acrescentando: “contemplei o céu e não vi luz – quer significar que todos os astros do céu comparados com Deus são puras trevas. Daí se conclui que todas as criaturas nada são, e as inclinações que nos fazem pender para elas, menos que nada, pois são um entrava para a alma e a privam da mercê da transformação em Deus; assim como as trevas, igualmente, por serem a privação, são nada e menos que nada. Quem está nas trevas não compreende a luz; da mesma forma, a alma colocando sua afeição na criatura não compreenderá as coisas divinas; porque até que se purifique completamente não poderá possuir Deus neste mundo pela pura transformação do amor, nem no outro pela clara visão.” ³



“Eis o que lhes diz Sta. Teresa: Desapegai o vosso coração de todas as coisas, e, depois, procurai a Deus e o achareis. — Para procurar e achar a Deus, é preciso primeiro conhecê-lo. Mas como pode conhecer a Deus e suas belezas infinitas, quem vive apegado às criaturas? Se em um vaso de cristal cheio de terra não pode entrar a luz do sol, assim também, em um coração ocupado pelos afetos terrenos e pelo apego dos prazeres, às riquezas, e às honras, não pode brilhar a luz divina. É por isso que o Senhor nos diz: Purificai os vossos corações de toda a paixão, e vereis que eu sou vosso Deus. Quem quiser ver a Deus, deve tirar a terra de seu coração, e tê-lo fechado a todos os afetos mundanos. Justamente isto quis dar-nos a entender Jesus Cristo na célebre metáfora da porta fechada, quando disse: Quando fizerdes oração, entrai no vosso quarto, e, fechando a porta, rogai em segredo a vosso Pai. Quer dizer que a alma, para se unir com Deus na oração, precisa retirar-se no seu coração, que é, segundo Santo Agostinho, o gabinete de que fala o Senhor, cuja entrada se deve fechar a todos os afetos terrenos.

Isto é também o que notou Jeremias por estas palavras. — A alma solitária, ou desapegada, na qual calarão os afetos da terra, se estreitará com Deus na oração com santos desejos, com ofertas de si mesma e com outros atos de resignação e de amor: e então se achará elevada acima das coisas criadas, de sorte que se rirá dos mundanos que tanto estimam e buscam os bens desta terra, aos quais ela julgará mesquinhos e indignos do amor de um coração criado para amar o bem infinito que é Deus. Em um de seus cânticos, o cardeal Petrucci diz que um coração consagrado ao amor divino ultrapassa em grandeza ao mundo inteiro.”4



Busquemos contemplar a face de Deus, glorificá-Lo e honrá-Lo por toda a eternidade, distanciando-nos das criaturas e das coisas para aspirar sempre a perfeição. Que o mundo seja a distração do nosso objetivo, que nos seja doloroso tudo o que nos afasta de Deus.



Salve Imaculada Conceição,
Ó Maria concebida sem pecado original, rogai por nós que recorremos a vós.



Referências:

¹ Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III – Santo Afonso

² S. João da Cruz, Obras Completas, Subida do Monte Carmelo, Livro I, Cap. III, pp. 147-148

³ S. João da Cruz, Obras Completas, Subida do Monte Carmelo, Livro I, Cap. III, pp. 147-148

(4) A respeito do desapego as criaturas - Santo Afonso de Ligório.




















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